O licor da bailarina

Era uma madrugada no início dos anos 90. Depois de uma cerveja e muito papo fui levar uma querida amiga pra casa (é, naquele tempo não tinha Uber e a gente dirigia depois de beber, mas com cuidado!). Ela me convidou pra entrar e tomar um licor. Mais que depressa, aceitei. O que eu não imaginava era que esse licor teria um efeito madeleine, me trazendo fortes e doces lembranças e emoções. Quando vi a garrafa com pequenas lâminas de ouro flutuando no seu interior voltei imediatamente para a sala de jantar da casa dos meus avós, com o meu avô colocando na minha frente aquela garrafa mágica, que tinha uma bailarina dançando ao som de uma caixinha de música, enquanto pequenas lâminas de ouro caiam sobre ela.

Essa garrafa me fascinava. E meu avô sabia transformar cada exibição dela em um momento muito especial. Não sei ao certo que idade eu tinha quando essa garrafa surgiu, mas ela esteve presente na minha vida durante muitos anos, sempre causando o mesmo encanto. Eu já era adulta quando meu avô morreu e a garrafa continuou por ali durante alguns anos. Depois, com alguma reforma ou mudança na casa ela saiu da frente dos meus olhos, mas não da minha lembrança, como nessa ocasião com a minha amiga — ainda que a garrafa dela não tivesse a bailarina, tinha as lâminas de ouro e esse licor acabou se tornando uma bebida especial para nós.

Passaram-se muitos anos sem que eu visse essa garrafa. Até esta semana. Ganhei-a de presente do meu tio, que a tinha guardado e sabe o quanto ela é especial para mim. A caixinha da bailarina estava quebrada, mas isso não é problema para quem, como eu, tem um marido que conserta até corações despedaçados. O mais engraçado foi me dar conta de que a bailarina não ficava exatamente dentro da garrafa, junto do licor, o que é bastante óbvio. A garrafa tem uma parte côncava no fundo, como a de garrafa de champanhe, só que ainda maior, que abriga direitinho a bailarina. Meu avô nunca me deixou perceber isso e alimentava a minha fantasia de que a bailarina estava realmente dentro da garrafa. O que torna ainda maior todo o amor que eu sempre senti por ele.

Rolar para cima